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Diário de quem já não vai para novo

...porque as palavras são a voz da alma.

Diário de quem já não vai para novo

...porque as palavras são a voz da alma.

08.11.24

Nem todos somos osórios


a. almeida

Não sou leitor nem ouvinte regular do Luís Osório no seu “Postal do dia”. De quando em vez, sim.

Quase sempre concordo e aprecio, mas nem sempre. No fundo é muito previsível no que escreve e “politicamente correcto” quanto baste. Procura não ferir susceptibilidades porque sabe que neste mundo-cão das redes sociais os julgamentos são fáceis e alvos de artilharia de quem não se conhece e a ser disparada de todos os lados. Basta uma palavra mal colocada, uma apreciação sinuosa fora da linha recta, a ponta do pé fora da argola, para aqueles centos de habituais comentários positivos, alguns untuosamente elogiosos, se transformarem nas mais duras “facadas” com apreciações mais ou menos ofensivas.

O Luís Osório sabe isso melhor que ninguém e por isso vai dizendo e escrevendo num estilo que agrada à larga maioria, quase sempre não deixando ponta sem nó e para cada palavra mais contundente logo coloca por baixo uma almofada, se uma ideia desalinha do molde logo a suaviza no parágrafo seguinte. No fundo como a experiente enfermeira a acariciar o músculo antes de lhe espetar a agulha.

Lançou agora o Luís Osório um livro, um calhamaço de 376 páginas, composto por muitos desses postais que considera intemporais e que por isso tanto podem ser lidos hoje como daqui a anos porque sempre actualizados no que pretendem transmitir, justifica. Concordo, nem poderia ser diferente. Está já nos melhores escaparates.

Apesar da apreciação acima, não quero com ela julgar o Luís Osório, mas antes expressar uma pontinha de inveja por não sermos todos osórios, não tanto pela qualidade do que escreve, que me é superior, mas por não ter eu, nem centenas ou milhares de osórios neste pobre país, o palco necessário à divulgação da escrita e da sua publicação. Nem presidentes da república a prefaciar. Não é para todos, seguramente para um qualquer Zé da Esquina por mais bem que escreva,

De resto, mesmo que num mercado à nossa medida, pequeno, atrofiado, há ainda muitos osórios com boa plateia, amplos palcos e tempos de antena onde podem vender facilmente o produto, porque as editoras os conhecem. São chamados como ilustres convidados às rádios, às televisões, aos jornais e revistas, numa promoção gratuita. Tudo é fácil e invariavelmente o que escrevem vender-se-á na primeira e segunda fornadas como pãezinhos quentes já com manteiga.

Já tive umas coisitas escritas para dar livro e algumas editoras até se interessaram e dispostas a fazer contrato, com as coisas a serem feitas como com a gente graúda da escrita, mas no essencial vai sempre dar ao mesmo, em que logo à cabeça o escritor anónimo, ilustre desconhecido do meio, tem que comprar à sua conta uma quantidade tal de exemplares que logo paga os custos da publicação e ainda o lucro suficiente para a generosa editora. O resto, do pouco que se vender, ainda será lucro para quem editou e apenas uns trocos para quem escreve. Será de supor que depois dessa primeira fornada, o livro que daí resultou sai dos escaparates, se lá tiver chegado, e arrumado da prateleira de baixo para desocupar espaço. Assim, dessa primeira ilusão, a coisa passa rapidamente ao esquecimento e o autor, continuamente anónimo a tentar vender a amigos e a familiares a porrada de livros que teve de adquirir para não ficar com o prejuízo todo. E nem todos são Sócrates com amigos reconhecidos a garantir a compra da edição. É mais ou menos assim, porque já estive no limiar desse processo e porque o diz quem melhor sabe do meio.

Assim sendo, esta coisa de arrumar as ideias em escrita ainda vai compensando mas sobretudo para os osórios e outros que beneficiam dos palcos já montados, dos padrinhos já conhecidos. Certamente que alguns tiveram que escalar até aí chegar, mas no geral basta desfraldar a vela porque o mar está de feição e o vento sopra para o lado certo.

01.06.24

Livros - Lamento os que me faltam


a. almeida

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Não sei quantos livros tenho,
De romance, aventuras, poesia,
Realidade ou simples quimera,
Nem os quero contar, confesso.
Sei quanto deles obtenho,
Como aconchego em noite fria,
Dois braços abertos na espera
Por alguém perdido em regresso.

Mas tenho muitos, centenas,
Um oceano de páginas revoltas
Em ondas de prosas e versos
Que fustigam o barco do meu ser.
Mas dez que fossem, apenas,
Seriam aves livres, bem soltas,
Pensamentos densos, dispersos,
Convergentes no impulso de ler.

Não sei, nem saber me empenho,
Nem vontade ou querer me assaltam,
Porque mais saber os que tenho,
Choro, lamento os que me faltam.

27.05.24

Em Estevais com J. Rentes de Carvalho


a. almeida

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Sozinhos ou na companhia de bons amigos, podemos fazer, 100, 200, 500 ou mais quilómetros, ver paisagens incríveis, lugares maravilhosos, sobretudo como os de Trás-os-Montes, transpor rios cantantes, atravessar ou percorrer aldeias pitorescas, ouvir histórias de vida ou meras curiosidades locais, colher cerejas do ramo de uma generosa sardeira, saborear os melhores pratos, degustar os mais frescos vinhos, mas delas curtas ou longas, valem as que acabam por ser peregrinações, pelo lado humano e mesmo espiritual que absorvemos. Foi já assim, há tempos, com a visita a um dos meus mestres das letras, o Miguel Torga, presente espiritualmente por ali naquelas paisagens simultaneamente rudes e acolhedoras, do seu reino que pintou como “maravilhoso”, fosse pelo negrilho que povoou o seus poemas, fosse já no repouso eterno na campa simples e rasa escondida num canto do cemitério da aldeia, mas agora, com a graça de ainda andar entre nós, deu-se a conjunção de certos astros para que pudesse ter a alegria de poder ser recebido por J. Rentes de Carvalho, interrompido no trabalho e do sossego da sua casinha na remota aldeia dos Estevais, ali pelo Mogadouro, onde tem raízes profundas.

A caminho do centenário, é este um dos meus autores preferidos e partilho com ele alguma amargura de só tardiamente ser descoberto e reconhecido no nosso e seu país, apesar de já ser tanto holandês como transmontano. Mesmo no seu município, onde o simples Trindade Coelho é orgulho local, só agora, aos 94 anos de idade, vai dar o seu nome à Casa da Cultural. Não é muito mas é alguma coisa.

Foi um tiro no escuro, um tiro de sorte ou apenas uma premonição, mas certo é que a minha passagem por Estevais rendeu frutos. Como escreveu na dedicatória num dos livros por si autografados, apareci como "um padre", porque sem anunciar, mas fui recebido e vi autografados a meia dúzia de livros que levava nessa esperança e ainda com a graça acrescentada de receber outros tantos como generosa oferta. E não digo que tive o privilégio, porque ao dizê-lo olhos nos olhos, ele corrigiu-me dizendo que "os privilégios não se recebem, oferecem-se". E ele ofereceu-mo!

Obrigado J. Rentes de Carvalho. Missão cumprida. Já pode colocar o aviso no portão da casa para não ser incomodado. De facto não se incomoda um artista na hora do seu trabalho, na criação, na sua própria casa, na sua aldeia. Bem haja!

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22.02.24

O que vale é que a mãe não vai ver isto


a. almeida

O WOOK não é só uma plataforma de venda de livros, como todos os dias obriga-nos a ler, emails. É o que dá comprar alguns livritos, porque a partir daí o nosso correio, várias vezes ao dia, recebe propostas às pazadas. Só hoje, blá-blá-blá menos 20%, ou de 10 a 30%, aproveite, última oportunidade. Mas no dia seguinte mais do mesmo.

As promoções sucedem-se e sabemos nós que na realidade aqueles preços rasurados, que supostamente são os base, não são os reais e quase ninguém compra os correspondentes livros por esse valor. Também um pouco como nas promoções ardilosas do Continente em que vinhos com nomes todos supimpas, tipo "Quinta do Burro Velho" ou "Monte do Sobreiro Dourado",  que quase ninguém conhece ou já bebeu, porque na realidade só existem na tola dos publicitários e estrategas de marketing, aparecem com um "antes 15,00 euros",  agora 3,45 euros".  Um fartote de promoções de 30, 50 e 75%. Ainda há gente boa!

- Ó mãe! Mãe! Anda cá ver isto!

08.02.24

J. Rentes de Carvalho - Ainda a contar o tempo


a. almeida

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No final de Novembro, no jornal da manhã na RTP 1 - Bom dia Portugal, li em rodapé uma qualquer notícia sobre José Rentes de Carvalho, mas foi tão rápida que para além do nome não cheguei a saber do que se tratava. Como não voltou a passar fiquei a pensar que falecera, o que não seria de espantar pois já conta com quase 94 anos porque nascido em 15 de Maio de 1930.

Felizmente, logo esclarecido, ainda por cá e a continuar a contar o tempo, pelo que não foi esse o motivo - ainda pode esperar - mas sim o facto de lhe ter sido atribuído o prémio de Personalidade do Norte 2023 pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), sucedendo ao arquiteto Álvaro Siza Vieira, em 2021, e à pintora Graça Morais, em 2022.

O prémio foi essencialmente simbólico e que lhe deu direito a uma peça escultórica da autoria de Cristina Massena, arquitecta da Escola do Porto,  produzida pelo Done Lab da Universidade do Minho e da BOSCH, em Guimarães, com recurso a tecnologia de manufatura aditiva avançada e foi entregue ao escritor pelo presidente da CCDR-N, António Cunha, durante o Fórum Competitividade Regional e Pós 2030: o Norte na União Europeia, que decorreu em 24 de Novembro passado na Fábrica de Santo Thyrso, contando com a presença da Comissária Europeia da Coesão e Reformas, Elisa Ferreira.

Apesar de tudo foi mais um reconhecimento, mesmo que tardio, deste fantástico escritor e mestre da língua portuguesa, que mormente a sua extensa e rica obra e da sua generosa idade, é ainda um quase ilustre desconhecido na sua pátria. Por muitos motivos, mas também por parte da sua vida, radicado em Amesterdão, fazer dele holandês.

José Rentes de Carvalho é filho de pais transmontanos, da aldeia de Estevais, da freguesia de castelo Branco, concelho do Mogadouro (distrito de Bragança), e neto de um avô sapateiro e de outro, guarda fiscal em Vila Nova de Gaia. Nasceu em 15 de Maio de 1930 em Vila Nova de Gaia. Frequentou o Liceu Alexandre Herculano, no Porto, e prosseguiu os estudos em Viana do Castelo e Vila Real. Foi na Faculdade de Letras e na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que traçou o seu percurso académico, estudando Línguas Românicas e Direito.

Abandonou o o país por motivos políticos durante a ditadura do Estado Novo, vivendo primeiramente no Brasil, onde trabalhou como jornalista nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo e posteriormente em Nova Iorque e Paris. O escritor acabou por se radicar nos Países Baixos em 1956, concretamente em Amesterdão, trabalhando na embaixada brasileira. Licenciou-se na Universidade de Amesterdão. Entre 1964 e 1988 foi professor universitário de Literatura Portuguesa e desde então tem-se dedicado exclusivamente à escrita e à colaboração em jornais e revistas literárias.

A sua extensa obra, dedicada à ficção, ensaio, crónica e diário, tem sido publicada em Portugal e nos Países Baixos, sendo recebida com reconhecimento pela crítica e pelos leitores, tendo alguns títulos alcançado o estatuto de 'best-seller'. José Rentes de Carvalho divide o seu tempo entre Amesterdão, nos Países Baixos, e Estevais, em Mogadouro -- metade do ano em cada lugar.

Atualmente, os seus livros são publicados pela editora Quetzal.

Tal como acontece em relação ao seu país, que praticamente o desconhece, pessoalmente também o descobri tardiamente mas já adquiri e li alguns dos seus livros. Tem excelentes romances de que conheço extractos, que ainda contarei poder vir a ler, embora não seja o meu género preferido, mas a qualidade e frontalidade da sua escrita merecem esse exercício de leitura. 

Já agora, a propósito da relativamente recente vitória eleitoral de Wilders, conotado à extrema-direita na Holanda, o escritor, profundamnete conhecedor desse pais e da sua sociedade, e da qual escreveu o livro "Com os holandeses" (que acabei de ler), de forma sintomática, escreveu no seu blog:

A vitória eleitoral de Wilders explicada aos pequeninos:

Um cidadão holandês que se inscreve para poder alugar uma casa num bairro social terá, no melhor dos casos, de esperar 12 (doze) anos antes que a sua vez chegue.

Aos refugiados é quase de imediato fornecido alojamento, mobilado e equipado, e uma subvenção que a eles e à família permite viver confortavelmente.

[foto: RTP]

Sobre J. Rentes de Carvalho - Programa "Primeira Pessoa", de Fátimas Campos Ferreira, na RTP, de Junho de 2022.