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Diário de quem já não vai para novo

...e sem paciência para seguir o rebanho.

Diário de quem já não vai para novo

...e sem paciência para seguir o rebanho.

25.10.24

Plena dignidade


a. almeida

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Sou folha de Outono, amarelecida,
Quase, quase a soltar-se do galho
De onde brotou em certa Primavera;
Em breve não mais que folha caída
Num resumo de que já pouco valho
Na aceitação de quem já nada espera.

A vida é assim! Tem que ser assim!
Uma bússola fiel de pontos cardeais
A indicar caminho, do sul ao norte,
A certeza do princípio que tem fim,
Dos dias que diferentes são iguais,
A verdade de que se vive p´ra morte.

Mas não é esta uma triste sentença
Ou simples fatalidade pré concebida,
Antes um desígnio feito à humanidade;
Importa é manter a luz acesa, a crença,
De que vivemos inteiros a nossa vida
E que toda ela de plena dignidade.

25.10.24

Andando e fingindo


a. almeida

Entre frias agulhas e alfinetadas,
Vamos indo e andando, fingindo
Que a coisa está bem, mesmo que feia;
No resto, é esperar ocas palmadas,
Olhares invejosos, mas sorrindo,
A apunhalar as costas da vida alheia.

Que encanto, oh doce maravilha,
Ver tal trama assim, impoluta,
A fingir que nunca foi filha
Da danada que dizem puta.

-

Sim, há dias em que nos apetece declamar um poema destes.

23.10.24

Sossego


a. almeida

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Perco-me no meio da multidão
De mil rostos, mas o meu desencontrado,
Entre sorrisos fechados e olhos a vaguear.
Encontro-me na plena solidão
Do monte, numa noite clara de céu estrelado,
Num horizonte, a presumir que vejo o mar.

Fico surdo no ruído da cidade
E nesse silêncio sufocado ouço os teus gritos
A clamarem por um abraço de braços vazios.

Então, é sossego o que me invade,
Quando te olho nos teus olhos doces, bonitos,
Porque no meu mar cabem todos os teus rios.

22.10.24

Companheira


a. almeida

casal caminhando.jpeg

Já vai longa a jornada.
A tua pele da frescura juvenil
Foi arada em sulcos pelo tempo
E na negrura dos cabelos já neva,
Num anúncio de Inverno.

Também me verás assim,
Já sem o viço da mocidade,
Os olhos mais turvos
E o cantar do pisco mais difuso.

Mas é bom que assim seja,
Porque não há começo sem fim,
Primavera sem Inverno,
Ou vindima sem mosto.

Mas há ainda caminho a fazer,
Com curvas a esconder,
Como cortina do palco da vida,
O que falta percorrer,
Um dueto a representar,
Até que o pano caia.

Vais, pois, seguindo,
Num corpo já dolente,
Com o passo já cansado,
Mas contigo vou indo,
Nem atrás, nem à frente,
Tão somente, a teu lado.

18.10.24

Cai a noite


a. almeida

Cai a noite numa densa mortalha de frio
Com a luz a esvair-se do quarto, do olhar,
Num convite tardio ao descanso merecido;
Abandono-me, já dormente no leito vazio,
No fingimento de ter uma mãe a embalar,
De olhos meigos sobre o filho adormecido.

Oh, quem dera! Quem dera, sim, ser criança,
A mais querida, a mais mimada que ninguém,
Sorver de novo a infância em longos tragos;
Que bem me sabe, agora, esta doce lembrança,
Do adormecer sereno, embalado pela mãe
Num leito de nuvens, em cantigas e afagos.

16.10.24

Desígnio


a. almeida

O desígnio fundamental
Que ao homem importará
Está na aceitação do ser;
Por ele não há bem ou mal,
Tão somente o que será
O fruto que dele nascer.

Tudo o resto é insatisfação,
Uma flor sem cor ou aroma
Olhos tristes em desconsolo;
Uma alma densa em ascenção
É o resultado da soma
Das partes do sábio e do tolo.

07.10.24

Resta a solidão


a. almeida

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Há em mim o eco de quem não sou,
Um vulto mudo, vazio, que nada diz.
E mesmo sendo o que o tempo deixou,
Nada sei de mim, nem se já fui feliz.

Caminho só, entre sombras e vozes,
Por ruas feitas de um sonho vão.
Sou como quem ouve os sons atrozes
De uma alma presa à escuridão.

Todos me veem, ninguém me sente,
Pois sou vazio de forma e ser.
Sou quem existe, estando ausente,
Sou quem espera, sem nada ter.

A solidão é a mais certa verdade,
Companheira muda, fiel e fria.
Com ela danço a estranha saudade
De um outro eu que nunca seria.

A solidão é tudo o que me resta,
Silêncio vago que se me entranha.
Sou só comigo, sou só a fresta
De um ser que o próprio estranha.

E assim me vejo, assim me aceito,
No vão completo da dura ilusão.
Ser humano é ter sempre no peito
Esta estranha, solitária condição.