A campaínha tocou. Pela hora adivinhava-se que seria o "cliente" do costume. Assomou à porta e confirmando-se, protestou:
- Você outra vez? Não sai daqui para fora!
- Já não passava há quase um mês! - desculpou-se do lado de fora o pedinte.
- Mas você está com bom aspecto! Não tem quem lhe arranje um emprego? - Perguntou o dono da casa para lhe medir a reacção.
- Não posso! Eu sou um homem doente! - replicou num tom lamurioso.
- Pois, olhe que não me parece, vejo-o sempre por aqui, com bom ar, a caminhar ligeiro a dar a volta à freguesia! Olhe que não é para gente doente!
- Mas dê-me lá uma moeda! - pediu, desinteressado do sermão.
- Vou dar, mas não apareça aqui antes da Páscoa! - deu-lhe uma moeda de dois euros, como se fora a juntar à moeda habitual o subsídio de Natal.
O receptor olhou para a moeda, acariciou-a, fez uma pausa e disse: - Olhe que já passo aqui há muito tempo e é a primeira vez que você me dá uma moeda de dois euros!
- Ai é? Pois para além de ter boa memória, está com sorte! Mas está a queixar-se ou falar de contente? - questionou. Ele, porém, encolheu os ombros e não lhe respondeu deixando-o sem saber, levando-o a replicar:
- Bem, olhe que não é mau! Se lhe derem dois euros em cada uma de cinquenta casas por aí acima, são 100 euros. Ganhará bem o dia! Mas vá lá à sua vida! - despediu-o para não alongar a conversa.
E lá foi o pedinte à sua vida, que não terá outra nem quererá. O dono da casa ficou a pensar naquela justificação do ser doente Considerou que fosse mesmo doente, o que de todo não lhe pareceu, certamente que o nosso querido estado social o socorreria. Ou será que não? Afinal estamos em 2024 e ainda há disto, pedintes, tal qual como no tempo da velha senhora. E já lá vão 50 anos sobre a mudança de direcção. Só que os do antigamente, parecia-lhe, esses pelo menos soltavam uma reza, recebiam o que calhasse e agradeciam encarecidamente pelas alminhas. Os pedintes modernos, esses não pedem, exigem e resmungam se a moeda é pequena, e mesmo se o que recebem nos bancos sociais de roupas não lhes agradar vai logo para o ecoponto.
Nesta dúvida, ficou o dono da casa, e ficamos nós, sempre com muitas reservas sobre quem ainda anda de porta em porta, a pedir com verdadeiras necessidades ou sem elas. E são muitos, desde bombeiros, a supostas associações de não sei das quantas, para além dos peditórios para as diferentes situações no âmbito da freguesia e paróquia, seja para esta ou aquela festa, para a igreja, para os presuntos, para os pobres, para os ucranianos, para os africanos, para isto, para aquilo. É certo que é bem melhor poder dar do que precisar de pedir, mas para quem tem que trabalhar para poder pagar as suas contas e responsabilidades, sem chorudas pensões ou rendimentos que não sejam os do trabalho, mesmo o pouco que se dá tem peso perante tantas solicitações.
Mesmo nestas dificuldades, porventura dar dois euros a um cliente recorrente, mesmo considerando que será apenas por vício, terá algum significado e mesmo valor, para quem dá e para quem recebe? Afinal, serão poucas as casas que darão dois euros a quem com insistência lhes toca à campainha. Porventura, quase sempre, quando alguém bate à porta de quem realmente poderia dar, não 2 mas 5 ou mesmo 10 euros, sai despedido sem nada nas mãos e a única coisa que pode almejar levar é o sermão. Esse dá-se ao desbarato.
Não está fácil, pois não, tanto para quem pede como para quem dá! E daqui a dias celebra-se meio centenário sobre a mudança do que seria o paraíso.
Pode ainda haver pobres, pobreza e miséria, disfarçada, envergonhada ou não, mas a barriguinha essa está cheia de democracia e liberdade. Pena que não matem a fome.
Como cantava o Sérgio Godinho há uma catrefada de anos, ainda faz sentido "A paz, o pão, habitação, saúde e educação" como premissas de liberdade a sério.